Direito e Software: Consumidor e Internet
Este texto foi produzido pela estudante Nathalia Orlandi Borin, a partir da palestra de Barbara Simões na Disciplina de Direito e Software, em 07/05/2019.
O movimento consumerista teve sua origem durante a Revolução Industrial, em 1890, através da fundação da New York Consumers League, pela feminista Josephine Shaw Lowell. A organização advocava pela proteção dos mais vulneráveis — na época, as mulheres e crianças que trabalhavam em fábricas sob péssimas condições, e ainda recebiam menos menos da metade do salário de seus colegas homens adultos. Essa proteção era realizada por meio do incentivo a boicotes a produtos fabricados por trabalhadores em condições abusivas.
Em discurso histórico em março de 1962, o então presidente dos Estados Unidos John F. Kennedy falou sobre os direitos dos consumidores de uma forma ainda mais abrangente — JFK introduziu novas regulamentações sobre alimentos, remédios e cosméticos, com o objetivo de proteger consumidores de produtos inúteis, mas que não são promovidos como tal (propaganda enganosa), ou, pior ainda, produtos tóxicos e que representam perigos à saúde. Defendeu também a livre concorrência e seus benefícios no sentido de diminuir os preços e tornar os produtos mais acessíveis.
Em 1985, a ONU estabeleceu os princípios que norteiam os direitos dos consumidores até hoje. São eles: direito à segurança (implicando em testes extensivos sobre novos produtos visando eliminar potenciais riscos de saúde aos consumidores), direito à informação (saber a composição do que estão consumindo e sob que condições o produto foi fabricado), direito à escolha (implicando no fim dos monopólios, possibilitando ao consumidor o balanço entre o barato e a qualidade), direito à reclamação (solicitar compensação por serviços mal feitos ou produtos defeituosos), direito de acesso à justiça (tutela jurídica para levar suas reclamações ao tribunal, caso a empresa se recuse a resolver seu problema), direito à educação para consumo (ser informado sobre seus direitos como consumidor) e, por fim, o direito à um ambiente saudável (responsabilizar e punir empresas por crimes ambientais, como contaminação de solos, rios e lençóis freáticos, emissão de CO2, entre outros).
Em 1990, no Brasil, tivemos o Código de Defesa do Consumidor. O texto foi baseado nos princípios definidos pela ONU, além de contar com algumas adições interessantes. A primeira delas é a proteção contra publicidade abusiva (se aplica à mensagens subliminares, propaganda infantil e de produtos nocivos como cigarros) e enganosa (quando o produto não é o que foi anunciado). Outra adição foi a facilitação da defesa aos direitos em questão, através da inversão do ônus da prova. Ou seja, quando um consumidor processasse uma empresa pela violação de algum direito seu, não é ele que tem a obrigação de provar que a empresa fez algo errado, e sim a empresa que precisa provar sua inocência.
Ainda na década de 1990, com a privatização das empresas de telecomunicação, tivemos a criação da Anatel como órgão regulador dessas empresas. Nessa época houve um grande debate sobre se a regulação da internet pela Anatel, ou se a mesma seria considerada “serviços adicionais”, que apenas usam a mesma infraestrutura. A segunda ideia prevaleceu, sendo criado o Comitê Gestor da Internet (CGi), órgão multissetorial, composto por representantes dos setores público, privado e acadêmico, responsáveis pela governança da internet.
Em 2011, foi escrita a Lei do Cadastro Positivo, que garante que o consumidor só tenha seus dados cadastrados em bancos de dados caso dê seu consentimento explícito. Garante também o acesso a todas suas informações cadastradas e o direito de retificá-las caso estejam incorretas. Outros marcos importantes foram o Decreto do Comércio Eletrônico, de 2013, que garantia o direito de arrependimento — isto é, de que produtos comprados on-line possam ser trocados ou devolvidos dentro de um prazo de sete dias, e o Marco Civil da Internet, de 2014, que, entre outras coisas, isentavam as grandes empresas de internet, como Google e Facebook, da responsabilidade pelo conteúdo veiculado em suas plataformas.
Considerando o lado estrutural, um problema recente é a convergência entre infraestrutura e conteúdo. Gigantes como Google, Microsoft e Amazon, com seus planos de construção de cabos submarinos de internet, além de serviços de telefonia como o Whatsapp, tornam ambíguos os limites entre o que é infraestrutura e o que é conteúdo. Temos também brechas na neutralidade da rede com serviços do tipo zero rating, como o uso de Whatsapp gratuito previsto no plano de internet de várias operadoras de celular — por um lado, isso é bom pois amplia o acesso a um serviço útil, mas por outro, é injusto com aplicativos concorrentes como o Telegram e o Signal.
Outra questão que foi muito discutida em 2016 diz respeito aos limites de dados para internet fixa — a Anatel impôs uma liminar que proíbe essa prática, mas não se trata de algo definitivo. A decisão foi baseada nas evidências de que não existiam justificativas técnicas para tal limite no tráfego, mas isso não leva em conta operadoras menores, que podem não ter a capacidade de competir com as tradicionais NET, Vivo, etc.
Essa não foi a única decisão recente que vem sendo questionada — nos últimos anos, o uso massivo de bots na disseminação de fake news visando influenciar a opinião pública, como aconteceram nas eleições em diversos países, incluindo os EUA e o Brasil, colocou em cheque a decisão do Marco Civil de não responsabilizar as plataformas. As consequências são muito severas para que plataformas como o Facebook e o Twitter não tomem alguma providência. O mesmo vale para a disseminação de conteúdo ofensivo e discursos de ódio nessas plataformas.
Considerando o lado do conteúdo, temos ainda o problema da concentração econômica — as gigantes da tecnologia como a Google têm grandes “ecossistemas”, na forma de aplicativos e serviços que já vêm instalados em muitos dispositivos, além do acesso à dados dos usuários de todos seus sistemas, que são compartilhados entre serviços diferentes. Essas práticas são conhecidas como lock-in, pois uma vez que você está dentro, é muito difícil e inconveniente mudar de plataforma. Tudo isso acaba dificultando o surgimento de concorrentes, e as poucas que conseguem algum sucesso acabam sendo compradas por empresas maiores.
E ainda precisamos levar em conta os problemas levantados pelo uso da Inteligência Artificial, através do tratamento automatizado e massivo de dados sensíveis para a realização de decisões. Primeiramente, esses dados são usados na veiculação de conteúdos e, principalmente, propagandas personalizadas, cuja ética já é debatível. Além disso, algoritmos como redes neurais funcionam como uma caixa-preta — os dados entram e uma recomendação sai, sendo que na maioria dos casos, nem os próprios programadores sabem que parâmetros afetam uma decisão em particular. Nesse caso, é praticamente impossível que um consumidor consiga tirar satisfação sobre decisões que afetam diretamente sua vida, como por exemplo, saber o porquê do seu pedido de crédito ter sido recusado por um banco.